segunda-feira, novembro 12, 2007

Morna, a Trapezista

Tinha a trapezista, a casa, dez graus à noite, saídas todas as manhãs para comprar pão fresco, Miles Davis e seus amigos improvisando no fundo. Todo dia era acordar cedo para ir à padaria, tomar banho (em seguida) ouvindo música; fazia questão de demorar-se debaixo d`água. Juntava as roupas para o ensaio numa mochila escolhida a dedo por ser prática e bonita.

Ensaiava duro todo o dia, tentava a cada vez esticar a ponta do dedo mais alongada ainda, curvatura de bailarina – na infância ela não dançou, por isso obrigava-se a treinar os pés tanto quanto os braços, que eram o instrumento para sustentá-la no ar. Tinha tanto carinho pelos membros superiores quanto pelos inferiores, diferente dos outros trapezistas que ligavam para as estripolias no ar mas esqueciam do acabamento final.

Vésperas de fim-de-semana, quando o circo ganhava limpeza, bolas de gás coloridas, vendedor de algodão doce, permitia-se sair à noite para tomar um vinho, relaxar a cabeça para voar mais leve no dia seguinte.

Era assim sempre, há mais de um ano quando o circo se estabeleceu numa única cidade e ela podia ter móveis seus pela primeira vez, conversar com o dono da padaria, ser reconhecida no bar da esquina, ganhar um sorriso cúmplice na locadora de vídeo. Pormenores urbanos que passavam despercebidos para a maioria. Para ela eram mais felicidade.

A rotina ela não seguia somente, aproveitava. Desenvolvia manias únicas de quem vive sozinho e ria de si mesma ao flagrá-las.

Estava assim, tudo bem, a trapezista achando que estava feliz na vida vidinha de minuto após o outro. Apesar da simplicidade aparente, tinha sonhos, vontades de conquistas.

Um dia ela e a bicicleta saíram para ir ao ensaio, mochila nas costas. Esse dia saiu até levemente maquiada mesmo àquela hora da manhã, passou batom e blush para disfarçar a palidez pela falta de sol. Pegou o mesmo caminho de sempre, rua principal, à direita na esquina do simpático vendedor de hot dog, reto até a curva na rua esquisita que só tinha prédio de vidro. Pretendia seguir adiante, mas não conseguiu não parar ao se deparar com uma árvore repleta de lírios cheirosos e folhas verdes. Parou para tocá-la e analisar melhor o milagre praquela época fria do ano. Acariciou o tronco, tirou umas duas flores do galho sentindo-se no direito de ter um pouco da beleza consigo – não sabe mais ao certo se foram duas ou três, a exatidão dos fatos está embaralhada - tinham tantas! Fez foto com o celular da surpresa na paisagem. Nos três dias seguintes só pensava na árvore, chegou a fazer o caminho de volta na contramão para passar em frente depois do circo. Contou a descoberta que de primeiro ela optara por guardar em segredo a dois amigos, eles mereciam saber do motivo do sorriso com olhinhos brilhantes.

No quarto dia, ao virar a curva para rua esquisita, foi surpreendida por um trânsito enorme, carros buzinando tomando todo o espaço até o outro lado da rua, o da árvore. Motoristas tão impacientes que nem notaram a beleza e o cheiro da natureza em meio ao concreto. Ela tentava espiar as pétalas brancas, exuberantes, quase dizia em voz alta “me espera que estou chegando aí”. Procurava uma brecha entre um carro e outro, era realmente intransponível, não havia espaço para ciclista ali. Um motorista abriu de repente a porta do carro para gritar raivoso algum xingamento ao guarda de trânsito que inutilmente tentava organizar o caos e atingiu a bicicleta, ela ralou o joelho. A roda entortou.

Saiu sangrando sem se importar com a dor, a roupa suja, o frio, a bicicleta. Doía mesmo era saber que não chegaria ao outro lado mais. Depois de tantos incidentes que ela via pelo caminho, não deixariam a árvore sair ilesa do caos urbano, ela não sobreviveria. Do posto médico próximo ela descobriu uma nova rota para chegar até o circo, lugar de onde ela nunca deveria ter resolvido se mudar, pensou, de um colorido artificial mas que está sempre ali, mesmo estando em qualquer parte.

No novo atalho as ruas eram largas com o caminho da ciclovia bem delineado, era mais seguro de andar por ali, mas não tinha a mesma graça, faltava o vendedor de hot dog na esquina e toda a beleza que ela via quando ia pelo outro lado. Resignou-se a tomar o trajeto recomendado, nada de ousar em busca de outras paisagens mais, acabava que chegava atrasada ao ensaio toda vez. Agora ela não levava bronca por atrasos mais mas também não conseguia fazer uma ponta de pé tão curvada que arrancava suspiros dos mais atentos da platéia. Quem liga? O circo é para criança mesmo e criança nem nota pequenas coisas como essa.