quarta-feira, dezembro 17, 2008

Casos sérios

Andava de um lado para o outro do corredor, mordendo os lábios, respirando fundo para se acalmar, se abanando com a propaganda de supermercado. Sentava e levantava, passava as mãos nos cabelos, e jogava a franja para trás da orelha. Maria Lúcia era do tipo certinha, nunca tinha dado um passo em falso na vida, movimentos todos muito calculados. Escola-faculdade-estágio-emprego fixo-fórum. Aos trinta e dois anos, promotora de justiça com boa fama. Agora lhe aprontava essa, a vida, puxaram-lhe o tapete e ela não sabia como sair do chão. O amor, essa coisa, sabe como é, a gente fica submissa mesmo, logo ela, que horror. Tinham acabado de chegar da Europa, os dois. Foi o avião aterrissar para ele sumir por quatro dias. Tudo tão lindo nos cafés de Marrais, nos lençóis brancos do hotel, dentre as tulipas de Den Haag, Amsterdã à beira mar, mais chique.

O caso era difícil, o daquela semana, ela tinha que estudar, montar uma estratégia, mas não ligava, não tinha medo, a cabeça não parava de pensar nela e nele e no que seria. Maria Lúcia foi procurar uma analista, Dra. Cláudia, indicação do juiz do tribunal, parece fera.

Leila, casada há três anos, namorou sete (anos, o mesmo cara). Um filhinho lindo, sobrinho querido, neto preferido. Tailleur todo dia, salto de bico fino, criança numa mão, chave do carro na outra. No fim do dia não tinha mais jantar a dois, cafuné na cama. Do dia para noite ele resolveu sair de casa, sei lá, viver todas as mulheres do mundo que ele não notava existirem nos últimos dez anos. O cara estava no auge e Leila ainda apaixonada. Ela sabia que ele gostava dela, sentia, mulher acha que sente essas coisas. Então ela deixou ele ir para ver qual era até porque não lhe restava outra opção. Foi e foi e foi mais um pouco até que surgiu a outra.

O cara entrou em conflitos. Sérios. Conflitos sérios. Não sabia mais o que queria, antes ele achava que era galinhar um pouco e voltar para casa, mas agora não sabia mais se tinha casa, que casa que era, aquela confusão, a maioria da gente sabe bem. O cara pirou tanto que em festa de família, quando era território neutro, tipo aniversário da prima, ele levou ela, a outra. Para dizer para mãe e para a avó – que já tinham dito que na casa delas, só a Leila – que ele tinha a vida dele e fazia dela o que bem entendia – da vida, só para especificar melhor. Ela mostrou-se muito simpática com todos e era uma mulher bem vestida, segura de si, bem resolvida. Dava até para entender a confusão do cara, imagina? Entre a cruz e a espada, diria minha falecida avó (que dentre a coleção de bordões gostava de repetir ‘antes mal acompanhada do que só’).
Sérgio estava assim, refém do coração, cansado de arquitetar planos para ver uma e outra. Passava o fim de semana com Maria Lúcia, os dias de semana com Leila. Uma fingia que não sabia da outra, porque amavam muito. Sérgio deixa levar, não consegue assumir uma atitude, tomar partido por um lado. Resolve viajar, vai para a Europa e leva Maria Lúcia. Lua-de-mel incrível. Volta e vai encontrar com Leila. Leila está namorando. Ele se tranca em casa por três dias, não consegue fazer nada. Liga para mãe e diz que ela “chutou o balde”. A mãe ri do outro lado e ele fica irritado, nervoso. “Não é bom ser corno, sabia?”

Sérgio marca um jantar num restaurante novo, à luz de velas, gostou de lá porque da primeira vez que entrou estava tocando Calvin Harris e Leila que havia apresentado-o. Mandou um buquê de flores com endereço e hora do jantar. Ela foi correndo, pode imaginar, mulher apaixonada, querendo curar as dores do amor com outro, mas louca para continuar a vida vidinha, ele, ela, o filhinho, casa-trabalho-casa, jantarzinho, cafuné, cama. Tem mulher que gosta. Pronto. Ele convenceu, ela desmanchou tudo com o outro cara – médico, bem sucedido, apaixonado. Deixou ele para lá para o recomeço.

Tudo pronto, casa arrumada, lençóis trocados esperando a volta dele no dia combinado. Nada. Anoiteceu e nada. Leila foi procurar uma analista, Dra. Cláudia, indicada pelas amigas, parece fera.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Ideal place to be

Tonight I wanna a bar with absolutely no glamour, no humour, low music.
Where the beer they serve is of any kind – the name I wouldn’t remember because it’s not made to be remembered.
A simple working-class bar with cheap tobacco.
Where the owners haven’t even heard about the law that forbids smoking inside.
Drunken no-ones, toothless prostitutes, music from the juke Box.
Is my accent strange? I like not being spectacular.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

a dois

Encontram-se na cozinha por acaso, vindos de seus computadores.

Ele: - Acho que para eu me tornar um cara especializado, só com 40 anos.
Ela: - Por que você não se especializa nessas coisas de computador, você adora.
- Eu gosto.
- Então. Eu ADORO.
- Então por que você não faz?
- Porque tem coisas que eu gosto mais.
- Eu também.
- (levemente irritada): O que por exemplo? Arte contemporânea?

Ele dá aquele risinho maroto, de lado, aquela boca carnuda de lado. Ela ri junto e abre a geladeira. Ele vai diretamente na gelatina tangerina que ainda está mole, ela diz a ele. Ainda? E mete o dedo na superfície molenga, laranja.

Ela: - Quando eu era pequena, a gelatina lá de casa vinha sempre cheia de marcas de dedinhos meus e dos meus irmãos.
Ele: - Sua família é maluca.
Ela: - Não é assim como você pensa, não.

Ele olha para ela com o olhar virado, como se tivesse olhando para alguém mais alto do que ele. Ela só de calcinha lavando louça. Encostado na porta, ele:

- Não é porque eu to olhando seu corpo não, tá beibe?, mas você nunca mais correu, por quê?
- Preciso responder? Não tive saúde nos últimos dias.

Ela volta para suas histórias, pensa em coisas simples, como em procurar a chave do carro na bolsa imensa, abrir a porta e ir para onde for observando como os urubus secam as asas nos postes. Ele volta pro dreamweaver, uma vozinha o perseguindo em inglês, sem dialogar com ele especificamente, ele obedece ao robô. Ela ouve Rhapsody in Blue, no fundo não queria arrumar um emprego, queria cuidar dos pássaros no jardim, ouvir muitas músicas, todas as possíveis, ir ao supermercado e comprar um skate. Gerschwin, feira, alpiste. Fila do banco, da xerox, ônibus. Uma casa longe, textos encomendados que pareciam chatos, mas podem ser legais, óculos enormes.

Hoje ele comentou dos óculos dela. Novos. Perguntou se o trocador ficou rindo dela. Ela sabe que os trocadores riem dos exageros; disse que sim e mostrou o ensaio que fez de si mesma com os óculos novos. Ele disse que era divertido por isso, uma surpresa a cada dia.

Ela pensa em arrumar um amante que gostasse que ela escrevesse no caderno mais caro da papelaria, de capa de couro preta. Que não reclamasse da hora que ela acorda, nem da falta de movimento, que falasse bastante à mesa e de quem ela não pudesse adivinhar os pensamentos.

- Mas não dá para comprar lingerie pra você sem saber seu número, dá? - entra ele carregando seu copo de leite com achocolatado orgânico.
- Ué, você não sabe meu número?

Olha para ele e tem a certeza de que com todas as dúvidas, ele não vai conseguir arriscar ir e deixar. Se não para quem reclamar que não quer ir dormir na hora que ela chama todas as noites, que o cano da pia estourou e precisa secar o banheiro. Da hora de ver o programa de domingo, do charuto novo, do chocolate de bolinhas da Costa Rica, do site incrível.

quinta-feira, setembro 25, 2008

Essa história já começa feia e não é bem ela que eu quero escrever. O tempo passou, eu continuo escrevendo, mas não parece. Todos os textos estão em letras minúsculas, tão mínimas que a vista não alcança nem com muito esforço. Apesar de não conseguir enxergar nada de todas as letras que juntei e que viraram palavras que unidas tornaram-se frases e assim por diante, fiz grandes descobertas nessa busca em tentar enxergar o que estavam naquelas letras de antigamente. Eu perguntava às gentes o que estava escrito ali, ninguém sabia dizer e eu também cansei de perguntar, queria descobrir sozinha porque em verdade aquelas letras eram tão, mas tão pequenas que não pareciam importar a ninguém e só eu mesma poderia decifrá-las, porque só eu poderia um dia descobrir o que tinha ficado ali que eu não lembrava mais.

segunda-feira, agosto 04, 2008

Se é que deuses existem.

Tenho até um mac bonitinho para escrever, casa vazia, filme sobre o processo criativo da escrita, um abajour anos 20, bloco, papel, caneta, lápis e borracha. Impressora funcionando. Saudades. Parece que não precisa de mais nada, é só sentar e bater as frases que vivo formulando na cabeça, juntar o monte de palavras ou frases soltas e tentar achar uma coesão, colocar ação no fluxo de pensamentos.
Escrever não pára (com acento que se nega a sair de cena) de fazer sentido, mas parece que é só pra mim e mais meia dúzia. Tinha a impressão de que fluía melhor quando eu era sozinha. Como vi ou ouvi no tal do filme, achei alguém para dar colo para os meus excessos. Não era bem assim no filme, mas assim foi entendido. Com colo e tudo eu me sinto só, mesmo sabendo, tendo quase a certeza de que não estou. Quando penso que de um dia para o outro posso voltar a estar só me vem com a fragilidade mais força ainda para ser independente, continuar a ser como eu era sozinha, só que agora com alguém. Parece que não dá, que é querer coisas demais, ser e ser também, ao mesmo tempo. É desejar ser super. Como eu disse ontem, meio bêbada, na verdade o que eu queria era ser famosa. Não para desfrutar do showbizz, mas literalmente para viver os louros da fama, poder fazer o que eu quiser que todos vão acreditar no meu projeto de filme, livro, peça de teatro, música, sei lá. Se bem que eu acho que se eu fosse famosa eu talvez não tivese estímulo para fazer porra nenhuma.
Pensei em ter um cartão depois de fazer um site: nele meu nome estaria grafado com toda a vaidade que me permite e abaixo, no lugar do crédito “prefiro não me definir”. Talvez ficasse muito grande, seria melhor colocar “multimídia”. Ou nada, fica menos arrogante, apenas “acessem o site, viramos todos um bando de www mesmo”.
Quando estou meio bêbada é sempre um momento de falar que eu gosto de escrever, é quando me permito. Nem sei mais se sei. Se curto ou não. Parei de ter tempo, não dei prioridade, tenho lembranças de um gosto bom e um nó no peito - angústia por não ter ido até o fim. Se tivesse dinheiro envolvido talvez eu conseguiria, mas assim, por compromisso com a escrita e comigo mesma, só se tivesse tempo e dinheiro no bolso. Não tendo, serve de desculpa.
Quero ser artista porque artista dá vazão ao pensamento. Não é isso que artista faz? Sente o que todo mundo sente, mas faz alguma coisa com isso. Gostaria de poder parar e fazer coisas com os sentimentos; saio atropelando eles por aí, deixando-os de lado, virando a página, procurando um novo encontro para já deixar o que mal começou pra trás. Diz Spinoza que é bom e apesar de eu concordar muito com ele, fico em dúvida. Tá certo que o melhor jeito de curar uma paixão é arrumando outra, mas esse negócio de deixar de lado o que incomoda pode ser pior. O problema vai ganhando dimensões ao invés de ser resolvido.
Sofrer para mim não é problema, se é que o verbo se encaixa na lista de atributos para ser um escritor. Hoje mesmo cheguei em casa contente de ser só eu, eu só e com saudades, mais ninguém além de mim e das minhas coisas. Minhas e dele. Fui pensando que feliz daquele jeito não podia, não saía texto nenhum, coisa e tal. Enrolei um pouco para sentar, lavei a louça, fiz comida, escovei os dentes, botei roupa de ficar em casa, fiz uns telefonemas e pronto – já estava sofrendo. Como eu disse pro cara que mora comigo e que eu ainda não estou a fim de citar o nome para não pessoalizar demais (a vida acadêmica inteira ouvindo que não se pode escrever em primeira pessoa dá em fobias desse tipo.), acho que a única coisa boa dos últimos tempos na minha vida é ele. Exagero. É que tudo em volta tá tão ruim que dá desespero. Nem tudo. O que dói é saber que eu me importo menos com o que eu deveria me importar mais. Tem certos assuntos que me agoniam, mas deixo eles de lado agora porque não quero entrar em detalhes, quero ser breve para conseguir reler e ver se tudo isso faz sentido.
Fui ao cinema querendo pagar meia, mas me boicotam, Em plena segunda-feira, achei que pagaria oito reais, mas eram dezoito. Paguei e foda-se. Tava muito a fim de ver o filme e não me arrependi. Não era bom, mas falava comigo e, numa segunda-feira de stress desnecessário (estresses no trabalho são desnecessários), precisava disso. Se me perguntarem se gostei, direi que gostei mais ou menos, não é um grande filme, mas é um grande filme para mim. Tenho conseguido distinguir melhor as artes assim, grandes obras e grandes obras para mim, não sei bem explicar a diferença. Não sei de porra nenhuma. Não tenho me importado com dinheiro, nem com a falta, nem com a sobra, tenho vivido somente e só de não me perturbar com isso agradeço a deus, se ele existisse...
As nossas palavras são somas do que ouvimos, me parece, me usando como exemplo pela falta de outros. Tem vezes que gosto tanto de frases que reproduzo-as interinhas. `As vezes só expressões. A gente deve ser isso, um somatório de experiências, entreouvidos e rabos de olho. É por isso que eu sou assim adaptável, mas cada vez mais cheia de não queros.
Tem uns probleminhas aí, to cheia deles, mas não me dá vontade nem de escrever só para mim, como maneira de refletir. Quero deixá-los e uma maneira que encontrei é não tocá-los, eles vão então indo assim de fininho, `a francesa como eu agora, depois de reler tudo.

sexta-feira, maio 23, 2008

espaço-tempo fora daqui

Piso numas pedrinhas espaçadas no chão, parecem de ferro de tão lustrosas. Passar correndo por ali deve machucar o meio do pé, algumas das pedras são pontiagudas. O céu está azul como nos lindos dias de verão no Rio. O litoral parece não ter mais fim, sigo mais alta que todos, no último banco do ônibus, olhando a água límpida. Não vejo aglomeramentos tumultuados na areia.

Sem meu moleskine perdido, fico um pouco órfã andando sozinha. Desejaria escrever umas notas mas o coração fica apertado de pensar que todas as dos últimos três meses se perderam por aí. O caderno deve estar num limbo aonde meu biquíni azul marinho novo deve ter ido, lá onde dizem residir isqueiros e canetas bic.

Caminhar sozinha por uma cidade estranha dá a sensação de que o tempo é muito maior do que me parece todos os dias. Dou voltas me perdendo, reconheço o Capitães de Areia da adolescência entre uma espiada na procissão que se organiza em homenagem ao São Benedito, o Santo do dia, no meio do dourado de uma dentre as tantas igrejas na ladeira.

Estar só e sem precisar atentar à chamada do celular, alegria com ponto de exclamação. Olhando o mar, no ritmo da Bahia, já com três colares de contas coloridas na bolsa, me dá saudade de quem tem marido, é engraçado pensar nessa minha nova condição. Uma vontade de não ter mais tempo livre só para mim, de querer dividir todos os possíveis com ele.

Pego mais um ônibus dos muitos do itinerário e salto numa sala onde todos os quadros são pisos ou pelo menos me parecem assim. Sou a primeira a entrar no museu com vista para o horizonte infinito. O chão é de tábua corrida, o céu lá fora, repito, é muito azul e o mar agora está transparente.

A escada de madeira, retorcida, me conduz ao pranto. Perco o fôlego de ver o que realmente me importa no mundo, de perceber nas paredes os meus questionamentos de cada segundo em que me permito desacelerar e questionar.

Tenho vontade de rodopiar entre aqueles quadros só meus por um instante, dar piruetas de bailarina sozinha como quem ouve música alta. Fico parada, quanto me basta aquilo de só pensar.

Deparo com uns inscritos despretenciosos, de tina preta, letra de fôrma, na parede branca em frente à segunda igreja do caminho que resolvi tomar novamente.

„Estamos juntos
Condenados a morrer – sozinhos.
Viver junto é um sutil movimento interno do ser
Quando sentimos um leve deslocamento
de um iceberg dentro de nós
Esse movimento tectônico
É saber viver junto
Como também saber morrer – sozinho.“
(Cao Guimarães.)

sexta-feira, março 14, 2008

mais uma noite apenas

Bebeu metade do copo 300ml de chopp de um só gole, com a sede de quem procura a garrafa d`água ao lado da cama ao acordar. Apoiou-o com força, chamou o garçom de mestre acenando enquanto levantava meia bunda da cadeira pra ter a certeza de que tinha sido notado. Rodou um lápis entre os dedos e começou a cortar o ar incômodo, inflado de Nelson Rodrigues, Manifesto Antropofágico, Persépolis, filme daqueles quadrinhos, do novo do Michel Moore, esse cara é um saco. Acendeu o cigarrillo que de tão metido se escreve com dois elles, e começoua narrar devagar, para quebrar o ritmo da cnversa, uma história de quando vestiu um roupão de seda e fumou charuto para ir a uma festa à fantasia num casarão abandonado nos idos de...
Eu ouvia esperando a chuva passar. Esqueci de dizer que lá fora chovia cântaros, os bueiros pareciam brinquedo público, em cinco minutos as tampas rolavam pelas ruas alagadas. Era por isso que eu estava ali, naquela mesa de bar numa madrugada cansada, de quinta-feira, fim da semana da pessoa não acostumada ao ritmo corporativo. Fitava meu amigo em frente esperando condições de sair e pegar um táxi por mais dura que estivesse. Não conseguia me concentrar em nenhuma conversa, olhava em volta para ver quem estava por ali enquanto falavam e dava amostras da minha desconcentração até que a chuva me deu uma chance de voltar para a tranquilidade da vida em casa, só com ele, por quem espero longas horas todos os dias até encontrá-lo à noite. E foi só isso, nada de clímax.